sábado, 29 de setembro de 2012

UMA CARTA




Há um vago número de muitos meses que me vê olhá-la, olhá-la constantemente, sempre como o mesmo olhar incerto e solícito. Eu sei que tem reparado nisso. E como  tem reparado, deve ter achado estranho que esse olhar, não sendo propriamente tímido, nunca esboçasse uma significação. Sempre atento, vago e o mesmo, como que contente de ser só a tristeza disso ... Mais nada. E dentro do seu pensar nisso - seja o sentimento qual seja com que tem pensado em mim - deve ter perscrutado as minhas possíveis intenções. Deve ser explicado a si própria, sem se satisfazer, que eu sou um tímido especial e original, ou uma qualquer espécie de qualquer coisa aparentado com o ser louco.

Eu não sou, milha senhora, perante o facto de olhá-la, nem estritamente um tímido, nem assentemente um louco. Sou outra coisa, primeira e diversa, como, sem esperança de que me creia, lhe vou expor. Quantas vezes eu segredava ao seu ser sonhado: Faça o seu dever de ânfora inútil, cumpra seu mister de mera taça.

Com que saudade da ideia que quis forjar-me de si eu percebi um dia que era casada! O dia em que percebi isso foi trágico na minha vida. Não tive ciúmes do seu marido. Nunca pensei se acaso o tinha. Tive simplesmente saudades da minha ideia de si. Se um dia soubesse este absurdo - que uma mulher num quadro - sim essa - era casada, a mesma seria a minha dor.

Possuí-la ? Eu não sei como isso se faz. E mesmo que tivesse sobre mim a mancha humana de sabê-lo, que infame eu não seria pra mim próprio, que insultador agente da minha própria grandeza, ao pensar se quer em nivelar-me com o seu marido!

Possuí-la? Um dia que acaso passe sozinha numa rua escura, um assaltante pode
subjugá-la e possuí-la, pode fecundá-la e até deixar atrás de si esse rasto uterino.
Se possuí-la é possui-lhe o corpo, que valor há nisso ?

Que não lhe possui a alma? ... Como é que se possui uma alma ? E pode haver um hábil e amoroso que consiga possuir-lhe essa alma ? Que seja o seu marido esse ... Queria que eu descesse ao nível dele ?

Quantas horas tenho passado em convívio secreto com a ideia de si! Temo-nos amado tanto, dentro, dentro dos meus sonhos! mas mesmo aí, eu lho juro, nunca sonhei possuindo-a. Sou um delicado e um casto mesmo nos meus sonhos. Respeito até a ideia de uma mulher bela. -

Fernando Pessoa in O livro do desassossego, pág 480.

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O sonho de toda palavra é sentir o que tenta explicar.